Julgamento da ADI 1945 e suas repercussões: há incidência do ICMS no download de software?
A ADI 1945 visa a inconstitucionalidade da Lei do Mato Grosso 7.098 a qual trata sobre a possibilidade de incidência do ICMS no download de softwares. Para o fisco, é motivo de grande alegria, tendo em vista o fato de ser uma nova forma de angariar recursos para os cofres públicos. Para os contribuintes, todavia, gera angústia e aflição em razão da forma como este assunto está sendo tratado.
A professora Tathiane Piscitelli, ao comentar sobre o tema, explica que o julgamento da ADI é muito limitado em diversos aspectos. Primeiramente, na perspectiva argumentativa, porque no julgamento da medida cautelar o foco esteve na possibilidade de incidência do ICMS de download à luz da possibilidade de considerar um bem incorpóreo uma mercadoria.
A bem da verdade, pode aparentar que não houve análise deveras detida no fato jurídico tributário, pois é evidente que, uma vez que é afastada a natureza de mercadoria, não há que se falar em ICMS, na medida em que se tem um dos aspectos.
Contudo, ao passo que haja mercadoria em tese (bem incorpóreo), deve-se avançar na análise de fato, a fim de verificar se estão presentes os outros requisitos do arquétipo constitucional para a incidência do ICMS: a operação sem dúvida está presente porque é um negócio jurídico, como professor Roque Antonio Carrazza ensina; tem-se mercadoria quando existe um bem móvel destinado ao comércio, de forma habitual, com intuito de lucro – se este bem móvel pode ou não ser incorpóreo é um debate que o Supremo deverá enfrentar.
Finalmente, na análise do mérito da ADI, pode-se até afirmar que se trata de um bem incorpóreo na medida em que os negócios evoluem. Porém, ainda que se argumente nesse sentido – o de um bem incorpóreo ser mercadoria –, o que parece ser a linha de raciocínio da Ministra Cármem Lúcia, posto que ela votou pela possibilidade de incidência do ICMS no download, tem-se outro desafio para enfrentar: a transferência de propriedade.
A operação de circulação de mercadoria não é uma mera circulação física, implica em circulação jurídica; esta implica em transferência de propriedade. Assim, faz-se o questionamento: há transferência de propriedade no download? O STF precisa enfrentar estas questões porque, caso contrário, não haverá julgamento completo, pois, na medida em que a avaliação é sobre a incidência do ICMS em relação a determinada realidade, deve-se analisar este fato gerador por completo para poder determinar uma tese. Como bem pontua Piscitelli.
O segundo aspecto limitador é o formal, haja vista que a ADI não considera o cenário normativo atual, ou seja, corre o risco de ignorar o conteúdo da Lei Complementar nº 116 e da Lei Complementar nº 157.
Já sob o terceiro aspecto limitador, considera-se que esta decisão do STF que se propõe a avaliar o conceito de mercadoria e de circulação para o ICMS deve ser coerente com o entendimento da Corte como um todo, afinal de contas, trata-se de um Tribunal que estabelece teses. A jurisprudência deve conversar entre si. Os casos são analisados isoladamente, mas, naturalmente, que eles formam o conjunto da compreensão do STF sobre os institutos jurídicos existentes.
A derradeira limitação observada pela referida professora é a limitação fática. Naturalmente, o contexto tecnológico em que vivemos hoje é bastante diferente do fim da década de 90, quando as formas de disponibilização de programa de computador eram outras. Atualmente, existe o movimento de migração para nuvem.
Ora, se há esse movimento migratório para uma espécie de depósito ou arquivamento virtual, a chamada nuvem, não se pode deixar de considerar que o conceito a ser estabelecido em relação ao ICMS deve ser aplicado ao contexto fático e normativo hodierno.
Dessa forma, quando a Lei Complementar nº 116 dispõe sobre a licença de uso de software e as camadas da nuvem sendo tributadas pelo ISS, naturalmente tal ato normativo dirime o conflito de competência entre estados e municípios, mas não inova no fato gerador do ICMS, pois este será determinado pelo Supremo Tribunal Federal.
Portanto, é necessário que essa decisão se relacione com o contexto de serviço. Para tal, é necessário que a decisão do STF não se dê no mesmo diapasão daquela sobre os planos de saúde. Assim, será preciso não relativizar no julgamento sobre as obrigações de dar ou fazer. A oportunidade de teste dessa relativização será com o julgamento da discussão sobre tributação das franquias, cuja repercussão é geral e cuja discussão de fundo se aproxima com a licença de uso de software, visto que, nas franquias, trata-se de uma cessão de negócio, enquanto a licença de software é uma cessão de direito.
Logo, se o STF definir que a licença de franquias está no espectro de serviço, uma vez que se está posto em lei complementar, é provável que concomitante decida que o uso de nuvem está abarcado pelo ISS. No entanto, se assim for a decisão da ADI 1945, não se poderia aplicar indiscriminadamente aos contratos atuais porque estes, mesmo que concedam acesso a softwares padronizados – pois se enquadram como mercadoria, no entendimento da Egrégia Corte –, tem-se ainda diversos serviços que promovem acesso a eles.
Destarte, esse acesso se dá pela prestação de serviço e não se confunde com o download nos termos em que o esta era praticado no fim da década de 90. Por fim, é necessário que haja uma decisão cautelosa, porque, embora existas uma delimitação concreta do ponto de vista normativo, também pode ter impacto nas decisões futuras. Esse impacto pode ser negativo, já que pode ser revistada de uma roupagem não mais utilizada na prática relacional.
Como ensina o professor Roque Antonio Carrazza, posicionamento ao qual nos filiamos, o ICMS-comunicação não incide sobre a comunicação, mas sobre o serviço de comunicação é efetivamente prestado, quando, em razão de um negócio jurídico firmado entre particulares sob regime de direito privado, e não trabalhista, o serviço de comunicação for efetivamente prestado.
Assim, este ICMS alcança a prestação onerosa dos serviços de comunicação entre pelo menos duas pessoas, nascendo de uma execução onerosa de uma obrigação de fazer, posto que não inexiste comunicação entre homem e máquina, visto que a máquina não tem vontade própria.
Ainda que se aceite a taxatividade, não se pode transformar em serviço o que não o é. Os itens que foram inseridos pela Lei Complementar 157 são inconstitucionais porque consideram prestação de serviço o que se trata de cessão onerosa de direito uso.
O Supremo Tribunal Federal, quando decide questões do tipo, não deve aplicar a legislação infraconstitucional, mas deve guiar-se pelas diretrizes constitucionais. Assim, sobre softwares não deve incidir ICMS, mesmo que se trate de software de prateleira. Portanto, é um problema de fácil solução.
Importa registrar, por fim, que o fato de a lei complementar ter chamado determinado fato jurídico de “serviço” não quer dizer que este o seja, haja vista que as fronteiras entre ICMS e ISS só podem ser remanejadas por meio da Constituição.
Rayane Dornelas Sukar